Mais do que a comunicação, o sujeito.
"Você pode saber o que disse, mas nunca o que o outro escutou."
Jacques Lacan
De fato, existe uma diferença entre aquilo que você fala e o que o outro ouve. E isso não é força de expressão ou exagero. A fala é algo muito peculiar e reflete o próprio sujeito, a linguagem que foi usada para inseri-lo no mundo, sua cultura, educação, estrutura psíquica, momento que está vivendo, etc.
É possível identificar a emoção que acompanha o que está sendo falado. Impaciência, intolerância, sarcasmo, insegurança, arrogância, humildade, preocupação. O que pode tornar a mensagem ainda mais difícil de compreensão.
Essa emoção aparece como um reflexo de como o sujeito se relaciona com o outro e que é fruto de sua história infantil. Se os pais o incentivaram a buscar o seu espaço no mundo e valorizaram cada conquista, esse poderá ser um profissional seguro, que consegue atuar sem que as emoções o impactem demasiado. Em outra hipótese, uma criança que tudo pode, não conhece regras ou frustrações, poderá produzir um adulto que terá dificuldade em ouvir “não” e reagirá de forma menos racional nestas situações. Não existe uma regra que estabeleça que, para cada tipo de vivências na infância haverá um desfecho na fase adulta, mas esses são exemplos que já ouvimos falar e, na clínica, poderá ser possível fazer o caminho inverso e chegar a conclusões semelhantes.
Assim, retornando à comunicação, um sujeito pode, por exemplo, falar muito rápido, de forma objetiva e nervosamente e um outro pode comunicar-se de forma prolixa acompanhada de uma boa dose de arrogância. Uma mesma mensagem transmitida por esses dois personagens fictícios certamente produzirá efeitos diferentes.
Há que se pensar sobre aquele que ouve. Da mesma forma, carrega suas próprias questões, emoções e vivências.
Poderá estar aberto para a comunicação, resistente, disperso, ou apenas coletando aquilo que mais significa para ele do que está sendo dito. Isso é bastante comum em todos os possíveis ambiente: em casa, na escola, trabalho, grupos de amigos, instituições em geral. Assim é o sujeito e a sua comunicação é resultado de muitas variáveis.
O objetivo aqui não é trazer alguma conclusão sobre o assunto, porque abordei muito superficialmente o tema. O que proponho é uma reflexão que vai além dos famosos e repetitivos problemas de comunicação. Lembrar que a comunicação é produzida por pessoas que são singulares, complexas e faltantes.
Para uma comunicação minimamente fluída, pode ser útil articular-se de forma a proporcionar abertura, investir mais na escuta e verificar o que o outro compreendeu para, na medida do possível, fazer remendos na mensagem.
Quanto maior o número de pessoas com que você se relaciona, mais relevante se torna essa visão ampla da comunicação.
É verdade que, para compreender isso, foi necessário vivenciar experiências negativas produzidas pela minha própria comunicação. Falar mais do que ouvir já foi a minha prática e percebi que esse é um caminho equivocado, sem sentido para quem lidera e para quem é liderado. Então, não se trata apenas de teoria e utopia literária.
A prática aliada a formação me ajudaram a compreender uma forma melhor de desenvolver o trabalho com as pessoas e a perceber que gostamos de ser ouvidos (talvez por isso nós, que ocupamos cargo de liderança, falamos tanto quando assumimos esse espaço). E não gostamos de falar só porque temos algo a dizer, mas porque queremos saber o que o outro pensa sobre nós. Queremos ser aceitos e, indo direto ao ponto,queremos ser amados. Além disso, buscamos uma sensação de completude e satisfação que é sempre passageira ou parcial. Mas isso é assunto para um outro texto.
Assim, os desdobramentos da comunicação são muitos e a origem de seus defeitos vem de longe. Fiquemos todos atentos ao outro para começo de conversa.
Hilda Victoria Carrasco
"Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?" (Sigmund Freud)
Implicar-se. Esse é um dos maiores desafios que a resistência abraça no caminho da análise. Deixar de responsabilizar o outro e o mundo, abrir mão do lugar confortável de quem acredita que nada fez de errado, não teve nenhuma intenção de provocar tal acontecimento e que, portanto, não é responsabilidade sua.
E não é para menos. Há muitos benefícios em portar-se desta forma. Qual poderíamos elencar primeiramente senão a leveza de espírito, a boa imagem preservada daquele que só acerta e a posição de injustiçado: "Viu só como são as coisas? A minha parte eu fiz, não tenho culpa se não deu certo."
Mas a queixa mantém-se presente, para dar sustento ao discurso do injustiçado, da vítima. Parece mesmo ser um lugar atrativo porque exige pouco de quem o utiliza. Deixar esse lugar implica em perdas e demanda maior de energia e coragem para dar conta da realidade, do de vir e tomar à frente das decisões de sua vida.
Claro que não podemos atribuir essa resistência unicamente a uma vontade do sujeito em tomar a posição de vítima. Há outras questões, muito mais profundas. Uma delas é o meio e a cultura em que o sujeito foi educado. Pode ser ali um modo comum de operar: terceirizar a responsabilidade – implicar sempre o outro e não a si mesmo. Há também aqueles que possuem um medo grande de ser considerado aquele que errou e, por essa razão, merece ser punido.
Pode ser apenas um pensamento, uma fantasia do próprio sujeito e que tem suas premissas. Essa forma de lidar com o erro de forma punitiva também está presente em empresas e instituições em geral onde o sujeito está inserido.
Assumir a sua parte pode custar caro. Quem sabe ser visto como incompetente ou sabe-se qual será o fantasma com o qual o sujeito tenta dar conta da realidade.
Há muitas razões que coloca o sujeito nessa posição de não se implicar com o que ocorre com ele. Quais seriam, então, as razões para que ele faça o movimento contrário? Parece ser algo bastante penoso sair de um lugar cômodo e seguro e querer mudar. O que ganha o sujeito com isso?
São questões que cada um precisa fazer para si.
Outra coisa que quero comentar aqui: há um “regime” estabelecido da mudança. Todos precisamos mudar. Mudar é movimento e movimento é vida. Mudar sempre só pode ser para melhor. Mudar é crescer, se desenvolver, progredir! Será?!
Há alguns dias, na Biblioteca Freudiana uma psicanalista falou “Nem sempre devemos pensar que estamos evoluindo, a coisa é em ciclos”, ou seja, muitas vezes repetimos, de diferentes formas, o mesmo comportamento, o mesmo sintoma, os mesmos lapsos. Às vezes conseguimos dar conta das questões que aparecem, outras vezes não. Em algumas fases da vida podemos estar menos sensíveis e em outros momentos podemos lidar de forma negativa com o que vem do externo.
Fiquei pensando sobre isso e sobre esse regime de mudança, crescimento, sucesso total e pleno.
Algo que me ocorreu foi que, um primeiro passo bastante significativo seria compreendermos quem somos, como nos relacionamos com o outro e quais as razões de possíveis angústias e sofrimentos possíveis que em alguns momentos se manifestam em nós de diversas formas.
Com isso, o movimento de implicar-se como sujeito poderá ter um início real e já tomará boa parte de nossa energia e investimento de querer. O depois é depois, à medida que cada um possa dar conta.
Hilda Victoria Carrasco
A função paterna e o espaço que a mãe oferece para a lei
Recentemente um grupo de profissionais da educação assistiu e registrou um “surto” de uma criança que quebrava tudo à sua volta e, enquanto filmavam, verbalizavam suas queixas. Quantas vezes já nos deparamos com casos como esse? Qual a origem desses comportamentos, afinal?
Há muito o que apreender da psicanálise a esse respeito. Ir um pouco além do olhar para a criança pode nos ajudar a compreender melhor esse tipo de situação. Vamos pensar um pouco no ambiente familiar dela. A proposta que trago aqui é refletir sobre o que pode estar falhando em grande parte desses ambientes.
Se pensarmos na ideia de pai, conseguimos rapidamente fazer um link com a ideia de lei. É isso mesmo. O pai, que pode ser real (carne e osso), simbólico (instância da lei) ou imaginário (pai-herói que a criança pinta em seu imaginário) é o representante da lei segundo Freud e Lacan.
Ele é o embaixador da lei especialmente porque é o terceiro na relação mãe-filho. É ele quem interdita e simboliza que à mãe falta algo que só ele pode prover. Ou seja, a sua presença de fato registra para a criança que a mãe precisa de algo que ela não pode dar. Isso é estruturante, necessário e oferece para a criança a possibilidade de, em reconhecendo que a mãe é faltante, comece a se estruturar como sujeito e busque outras possibilidades de satisfação por si só. Registra também que há limites, permissões, legalidades e ilegalidades, por assim dizer. Em última análise, permite compreender que a mãe não é só dela e vice-versa e que há um mundo lá fora e que é preciso se preparar para ele.
A questão que devemos pensar é quando o pai não pode não deseja ou não consegue ocupar esse espaço de representante da lei, ou seja, espaço de terceiro na relação mãe-filho e sujeito desejado pela mãe o que pode acontecer nesses casos. Vale aqui comentar que a função paterna pode ser realizada por outra pessoa na falta do pai como um tio, tia, avô, etc.
Mas, em quais circunstâncias o pai pode deixar de representar a lei?
Especialmente, traz Lacan, isso fica mais evidente a partir do próprio discurso da mãe. Isso mesmo, a mãe pode desvalorizar a instância paterna enquanto dialoga com a criança. Ainda, pode desejar que a relação seja mãe-filho apenas, sem que um terceiro (pai, tio, tia, avô, etc.) entre na relação. Estamos diante de uma hipótese em que a mãe investiu sobremaneira no desejo materno e tem dificuldade de separar-se do filho. O filho é apenas seu, ele é sua única e absoluta fonte de satisfação.
Nessa hipótese, sem simbolizar a lei, a criança poderá ter repetidamente comportamentos que demonstram que não reconhecem limites e, por vezes, clamar por uma intervenção.
Lembram do vídeo em que a criança quebra tudo a sua volta diante de vários adultos? O que ela registrou ali em ato? São várias as possibilidades e para saber do que se trata seria necessário conhecer melhor a criança e seu histórico. Inicialmente pensei se tratar de uma falta de reconhecimento de limite. Agora penso que talvez não se trate de como pará-la mas sim como ampará-la - e aqui estou me valendo de uma passagem da série PSI de Contardo Calligaris. Nesse caso o passo inicial seria escutar a criança de uma forma interessada. Fazê-la falar e assim permitir que ela se conheça e se reconheça em sua fala. Estou falando em compreender caso a caso o que se passa e incluir o sujeito nesse processo de análise e compreensão.
Não se objetiva aqui procurar um culpado ou constatar que não há o que fazer, mas sim construir uma mentalidade de análise mais ampla e fundamentada, para que possamos lidar melhor com esses incidentes e evitar a repetição nas novas gerações.
Hilda Victoria Carrasco
Neurose obsessiva
Já vimos ao menos no cinema personagens muito interessantes que mantinham curiosos rituais e cerimoniais em seu cotidiano. Melhor é impossível é um desses filmes com o personagem Melvin interpretado pelo ator Jack Nicholson com todos aqueles jogos de trancar a porta várias vezes, não pisar na divisão das calçadas, esterilizar tudo ao seu redor, evitar contato físico com outras pessoas, entre outros sintomas.
Estamos falando sobre a neurose obsessiva. Algo que pode ser melhor compreendido e também tratado, se assim for o desejo do sujeito.
O obsessivo é geralmente uma pessoa culta que valoriza a racionalidade ou tem um estreito laço com a religião. Discreta, cheia de pudores e que está pronta para sacrificar seus próprios desejos em razão do bem-estar dos demais. Pode ser também aquele que serve muito bem, seja no âmbito familiar ou do trabalho também conhecido como um bom funcionário no sentido de não buscar seus interesses, mas sim o interesse dos outros.
Ele idealizou demais. Sempre em busca de algo que é inalcançável. Quer sempre ser o melhor. Pode-se dizer que é aquele tem uma boa resposta para tudo. Estou aqui citando Charles Melman em seu livro A Neurose Obsessiva. O desejo do obsessivo é aquele impossível de ser realizado.
Uma pessoa que possui uma estrutura neurótica obsessiva quer suprimir-se enquanto sujeito. Ele quer permanecer discreto, sem fazer muito barulho e precisa fazer isso para dar lugar a quem acredita que deve ocupa-lo. Geralmente o pai, um irmão, um tio. Todo o espaço e valor deve ser dado a esse que merece o lugar de destaque. Há um César que não é ele. Talvez um dia ele possa ser, mas por hora ele deve ajudar a sustentar quem ocupa esse lugar. É mesmo muito diferente da histérica.
Na sua própria fala não se percebe a ênfase nele enquanto quem dá sustento ao que é falado. Quando fala é sempre como se estivesse lendo um texto.
Outro aspecto que a literatura psicanalítica apresenta é o sentimento de culpa que o obsessivo carrega e que geralmente não há um ato que o justifique. A partir disso, ele precisaria sempre verificar se cometeu uma falha, se esqueceu algo ou se fez mal a alguém.
O que explicaria todos esses fenômenos psíquicos? Qual a origem?
Para a psicanálise, o obsessivo sofre de algo que surgiu na infância e, segundo Freud, se baseia em um recalque. Mas se trataria de um recalque mal logrado, que não se sustenta, parece que está sempre ameaçado – como se algo pudesse vazar. Daí a sensação de uma constante tentação que o obsessivo cultiva e a contrapartida da angústia que fica vigilante para que nada escape.
Como defesa contra essa tentação e como proteção contra o pior que é sempre esperado por ele, surgem os atos ou pensamentos obsessivos, como compulsão à limpeza, medidas de proteção, ordens, proibições, impulsos, reflexões, dúvidas ou desejos.
“Pode-se dizer que quem sofre de compulsões e proibições age como se fosse dominado por um sentimento de culpa, do qual nada sabe, porém; de um sentimento de culpa inconsciente, portanto (...)”. FREUD, Atos Obsessivos e Práticas Religiosas, 1907.
Esses atos obsessivos precisam ser executados, ainda que pareçam comuns, sem sentido ou sem valor. Se não são executados o sujeito é tomado por uma angústia insuportável. Ele mantém seu compromisso com todos os pensamentos e cerimônias que lhe ocorre para ver-se livre da angústia. Quem realiza esses atos o faz conscientemente embora sem conhecer o verdadeiro significado que existe por trás de cada um deles.
De uma maneira geral, essas pequenas cerimônias são realizadas longe da presença de outras pessoas. Daí podemos compreender que podemos ser amigos ou mesmo parentes de pessoas que sofrem desses sintomas, mas que não tomamos conhecimento, são bem disfarçados.
Destaca-se a predileção do obsessivo pela indecisão que permeia a sua vida. Para Melman a razão disto é que uma decisão incorre sempre em uma renúncia e o obsessivo teria dificuldade em lidar com a ideia de renunciar e com isso perder algo - com a falta. Ele também tem dificuldade de lidar com o desejo pelo mesmo motivo: desejar significa se deparar com a ideia de falta.
Também são conhecidos nos estudos de psicanálise, casos de obsessivos com pensamentos supersticiosos outros casos em que há uma supervalorização dos pensamentos chegando ao ponto da onipotência. Um exemplo é desejar o mal para o outro e ver-se responsável quando descobre que o que desejou aconteceu de fato. “Seu amor ou mesmo seu ódio é mesmo muito poderoso”.
Mas, o que fazer ao se identificar com essas características?
O que compreendemos na psicanálise é que só há demanda de tratamento quando o sujeito está diante de um sofrimento. A partir da análise do que cada ato representa, do que está sendo dito pelo inconsciente através dos pensamentos obsessivos e de todo o cerimonial à que obsessivo submete-se é possível trilhar um caminho para uma existência mais autônoma e com menos sofrimento.
Há mais para se falar sobre o obsessivo, mas fica para os próximos textos.
Hilda Victoria Carrasco
Notas sobre o Seminário “Os Nomes do Pai: vigência da tripartição neurose, psicose e perversão? ”
Silvia Amigo
Silvia Amigo, psicanalista argentina e autora de diversos livros, esteve em Curitiba-PR nos dias 19 e 20 de agosto de 2016 para tratar do tema “Os Nomes do Pai: vigência da tripartição neurose, psicose e perversão? ”.
Passo a comentar alguns pontos que pude alcançar e que me trazem muitas questões, em especial sobre como pensar as estruturas que estão fora da tripartição neurose, psicose e perversão; a importância dos nomes do pai para o sujeito, todos os desencadeamentos a partir destes versus a sua decadência que assistimos atualmente; o sintoma paterno como algo que nem todos os homens que se propõe a ter filhos possuem; pensar a inibição, o sintoma e a angústia a partir do próprio nó borromeano; o significado do sintoma para o sujeito; do que se trata o “saber fazer com” de Lacan; dentre outras questões.
Silvia Amigo começou tratando do início dos trabalhos de Lacan e o que era vigente à época como o Kleinismo e Annafreudismo. No caso do Kleinismo a mãe tinha todos os objetos nela (o falo e o pai) e para o Annafreudismo havia a redução das pessoas a tornarem-se bons cidadãos, pessoas obedientes socialmente.
Lacan retoma o pai e a questão da tripartição (neurose, psicose e perversão) e sublinha o Nome-do-pai ainda na mãe. Ou seja, a mãe era a “passadora” desse significante.
Sobre a questão de existir ou não existir ainda a vigência da tripartição, Silvia Amigo diz que há e não há a vigência. Qualquer raciocínio psicanalítico há que ser paradoxal, segundo ela.
Em seguida Silvia Amigo passou a abordar o nó borromeano e diferenciar situações em que há desencadeamento explicando que pode haver foraclusão do Nome-do-Pai sem que exista o desencadeamento (separação das cordas), como é o caso de James Joyce que Lacan tomou como um caso clínico embora, segundo ela, Joyce não tenha nem mesmo pedido para ser analisado.
A subjetividade que retém o Nome-do-Pai é a neurótica.
No desencadeamento imaginário, perde-se o corpo, o sujeito não se reconhece frente ao espelho. O desencadeamento no real seria um empuxo à mulher ou o gozo absoluto que persegue o psicótico.
Para explicar a necessidade do Nome-do-Pai, Silvia Amigo trouxe o exemplo da construção de uma casa - situação em que primeiramente é preciso fazer um buraco no chão para a fundação. Isso ela trouxe como o paralelo do buraco que a linguagem produz. Em seguida é necessário colocar o concreto como um cercado. Na neurose esse carcado é o nome do pai que mantém o buraco de Das Ding e não deixa a casa vir a baixo.
Silvia retomou os três mitos que Freud sobre a figura paterna: Complexo de Édipo, Totem e Tabu e Moisés e a Religião Monoteísta, apontando que Lacan não rejeitou os mitos, mas sim ofereceu uma trajetória de estruturas lógicas para o Nome-do-Pai.
A primeira etapa dessa trajetória seria a metáfora paterna. O pai tem voz passiva e é nomeado pela mãe. O pai que caminha pela casa não é importante, mas, o que realmente importa é o fato de que ele seja ou não nomeado pela mãe.
Aqui ela apresentou o matema do DM, indicando que o Outro materno fica dividido pelo falo, que esclarece o enigma do desejo da mãe. O falo é aqui indicado como o Nome do pai.
Ainda que passe a existir a pluralização do Nome-do-Pai, esse como singular não vai perder a vigência.
A segunda etapa. Aqui é apresentado o discurso do mestre, em que S1 emite a castração para S2 e aponta que mais tarde Lacan vai chamar S1 o nome significante Nome-do-Pai e que Inibição, Sintoma e Angústia vem no lugar das falhas inevitáveis desse significante.
Como uma terceira etapa, é preciso compreender a fórmula da sexuação, onde existe um que sempre diz não e que esse é o pai necessário, que não cessa de se inscrever. Aqui o pai é nomeante (voz ativa). Do pai se espera um dizer que não. Importa as características do pai, ou seja, se ele dá conta desta função e deste dizer não. Ele não é mais nomeado e precisa estar à altura de sua função, o que não foi o caso de James Joyce.
Silvia aponta que o que se espera do final de uma análise é que o sujeito seja ele mesmo o pai de seu nome e que, portanto, saia do lugar da “religião do pai”, assim chamada por Lacan a aderência para o neurótico da fantasmática “bate-se numa criança”. Que consiga colocar o pai em outro lugar diferente do “pai batedor” e fazer algo com o seu gozo. Nessa fantasmática, enquanto mantida, o sujeito não perde nem o gozo da cena perversa nem a proteção do pai.
Uma diferenciação necessária para pensar nas outras estruturas:
Sobre a feminilidade, Silvia Amigo recordou de um dito de Lacan que, para ser um bom psicanalista lhe faltava duas coisas: ser judeu para ler melhor a letra e ser mulher para chegar melhor ao real. A feminilidade é um oco onde o real pode chegar sem o forçamento do pai. Uma mulher é não toda mulher, está não toda no reino do pai, do falo. Do contrário, a mulher enlouqueceria.
Em seguida Silvia indicou que o que a psicanálise propõe fazer a respeito do sintoma é diferente do que se propõe qualquer terapia: não eliminar o sintoma, porque o sintoma é a forma que o sujeito põe limite em seu gozo. O sintoma para o adulto é um meio de fazer barreira a algo que transborda em relação ao pai.
Sobre o que seria a quarta etapa, Silvia trouxe o nó borromeano. Lacan o introduz mais pelo lado da família do que pela lógica matemática, já que se trata de um brasão de uma família da Itália que significa que romper com um é romper com todos e aconselha a usar o nó de um modo bobo e simples.
Lacan vai dar igual importância às três cordas (real, simbólico e imaginário). Existem vários outros nós, mas este é o único que revela o nome do pai singular à medida que nenhuma corda interpenetra a outra. Quando não há desencadeamento entre as cordas, mas há interpenetração, ocorrem então os acidentes foraclusivos. Ainda assim trata-se de uma subjetividade, mas não da subjetividade neurótica. Apenas se as cordas estão separadas é que temos o desencadeamento.
Cada corda do nó é um toro e tem um buraco impenetrável (real). Então há um real do real, real do simbólico e real do imaginário. O simbólico, ao enodar, também é chamado de Nome-do-Pai.
Ao responder algumas perguntas do primeiro dia de seminário, Silvia Amigo trouxe que o sintoma na neurose vem ao socorro do pai real que falha como sempre. Nem todas as crianças conseguem fazer uma fobia para fazer frente à essa falha. No Seminário RSI, aula 4, Lacan define o pai real:
- Tem um dizer que não
- Aquele que faz da mulher o objeto causa de seu desejo e goza dela
- Elege ela para ter filhos
- Oferece aos filhos os cuidados paternais nos justos “me-dios” (meio Deus), não como um Deus. Se a criança o vê como um Deus é uma questão fantasmática da criança, mas o pai não deve acreditar que é. Se for pensar que é Deus é o pai de Schreber.
Isso é chamado por Lacan de sintoma paterno. Silvia Amigo alertou para o fato de que nem todos os homens que querem ter ou que tiveram filhos possuem o sintoma paterno.
No segundo dia de Seminário Silvia Amigo iniciou falando sobre mentalidade, um termo que era rechaçado por Lacan porque se referia a histórica das mentalidades da psicologia social francesa. Lacan reutiliza esse termo no Seminário RSI, na primeira aula, ele diz que a mentalidade seria a capacidade ou não de manter as três cordas do nó borromeano juntas o que implica a necessidade de manter um imaginário – sendo o imaginário em Lacan a referência ligada ao próprio corpo.
A mentalidade seria homóloga a subjetividade e quem não tem a mentalidade, como exemplo na síndrome de Asperger não tem corpo erógeno, somente corpo biológico. A mentalidade se mantém com qualquer nó subjetivo que mantém juntas as cordas. Um nó que tenha erros foraclusivos, ou seja, interpenetrações, mas que mantém as cordas juntas, mantém uma mentalidade ou uma subjetividade. Então, como chamamos aquelas mentalidades conservadas que não apenas não desencadeiam, mas que provavelmente nunca vão desencadear? Seriam psicoses? Essa questão, segundo ela, não se resolve nomeando-as como psicoses ordinárias (Jacques Alain Miller), porque seria uma forma de escamotear a questão.
No Seminário 24 Lacan vai falar de sentimentalidade – ele que havia rechaçado os sentimentos, dizendo que a única mentalidade que faz uma fusão ódio-amorosidade é a mentalidade neurótica. “O neurótico sintetiza o sentimento” (Lacan). O psicótico foraclui o um do sentimento. Por um lado, está o ódio do perseguidor no delírio persecutório e por outro lado o amor desencadeado do delírio da erotomania.
O neurótico pode aguentar a parte do outro que não pode amar porque é algo radicalmente estrangeiro e que todos temos em relação a quem mais amamos: pais, filhos, amigos, par.
Lacan vai se perguntar “Qual é o erro da metáfora? ” O que a metáfora não pode simbolizar? Ele diz que sempre é necessário para elaborar o não simbolizável do gozo que excede a substituição significante inibição, sintoma e angústia como coisas que fazem barreira ao gozo que não pode simbolizar a mera metáfora.
Em seguida Silvia Amigo passa a desenhar novamente o nó borromeano para a mentalidade neurótica com as áreas reais de gozo de cada uma e indicar como se produz a inibição, o sintoma e a angústia a partir do avanço de cada área de gozo sobre a outra corda. Vou aqui transcrever essa parte do Seminário que requer a cautela de não cometer equívocos:
“Na zona de enlace de imaginário e simbólico, Lacan vai colocar o sentido o gozo sentido. Cada zona de enlace é um semi-velamento dos buracos reais dos registros. Sempre que gozo, velo parcialmente os buracos, estou esquecendo por um instante os buracos reais de um registro. Entre real e simbólico corresponde o gozo fálico, gozo da palavra, fora do corpo. Entre o real e o imaginário semi-velo os buracos do real e do imaginário: é o gozo do Outro que está fora da palavra. É o que ocorre quando não há ditos. Passa como real sem poder tramitá-lo sobre as palavras que não são ditas – o que se vê muito nas famílias que não falam de algo importante. O dizer está no ar. Lacan vai dizer que se o gozo sentido avança sobre o buraco do simbólico ameaçando tapar totalmente o buraco do simbólico se vá produzir a inibição. Patologicamente a inibição é um avanço e estruturalmente a inibição é o que detém o avanço, fazendo um limite ao avanço. Por isso à inibição Lacan vai chamar Nome do pai.
Se o gozo fálico avança sobre o real pretendendo domesticar o real, o real vai responder com o sintoma (patologicamente é um excesso de gozo fálico e estruturalmente é uma detenção do avanço). Esse seria o nome simbólico do pai para Lacan. Um exemplo seria uma criança fazendo uma fobia colocando uma barreira ao gozo fálico dos pais. Aí se revela o sintoma como nome do pai que detém o avanço.
Quando o gozo do Outro avança fora da palavra sobre o corpo tamponando seu furo do real aparece a Angústia como nome real do pai. Como uma detenção, como um sinal de angústia. Lacan assim retoma o ternário freudiano Inibição, Sintoma e Angústia, como os que fazem frente ao erro da metáfora. Por isso vai respeitar inibição, sintoma e angústia clinicamente até que o paciente consiga um recurso menos oneroso para resolver seu erro e colocar seu gozo. Até que ele consiga saber fazer com (virar-se com) ”. (Silvia Amigo)
Até este Seminário Lacan falou de cortar gozo e agora passa a falar sobre fazer algo com, porque ele percebe clinicamente que ninguém renuncia o gozo. O que se pode fazer é “reciclar” o gozo. Aqui Silvia indica um giro grande de Lacan porque vai usar o gozo podre e excessivo do erro da metáfora para algo que nutra o sujeito que ele consiga fazer disso a razão de sua vida.
Lacan se pergunta se vai ser necessário algo mais do que Inibição, Sintoma e Angústia ou se vai precisar de um quarto que seria o Complexo de Édipo. Ele responde que bastam os três se o enodamento é borromeu porque a qualidade borromeana é o nome do pai. Mais tarde vai dizer que Freud tem razão onde define o pai real já tratado aqui.
Silvia passou a manipular as cordas e constrói novamente um nó borromeano de três. Demonstra que é possível perder alguma zona de enlace, perguntando a quem não aconteceu de perder o sentido da vida frente a um luto. Lacan diz que o nó é dinâmico e é uma questão de estiramento entre os nós que podem fazer perder momentaneamente uma zona vital para algum dos gozos do sujeito. Também indicou que não há maneira de diferenciar as cordas se não damos cores diferentes para cada uma, por exemplo.
Ela indicou também que uma abertura de uma das cordas ao infinito não é um desencadeamento porque as pontas vão se juntar novamente e o espaço do nó que é subjetivo é um espaço envolvendo onde se encontro o neurótico. O neurótico não se encontra no plano euclidiano e sim no projetivo que nos envolve no fantasma de cross-cap. Ao abrir a corda ao infinito o buraco real se expande ao redor da corda e implica clinicamente fazer aparecer o real do registro. O analista opera abrindo ao infinito cada corda e essa abertura de reta ao infinito Lacan chama de significante unário S1 de i=S1. Qualidade borromeano Lacan define como “existe um que diz não”. Exemplo da Agorafobia – sensação de viver num espaço que não envolve o sujeito. Então o agorafóbico se sente melhor quando é acompanhado porque o humano que o acompanha lhe restitui sua capacidade de marcação simbólico-imaginária.
Ainda no seminário RSI Lacan chama ao quarto nome do pai realidade psíquica – complexo de Édipo. No Seminário Sinthome vai dar outro nome ao quarto borromeu de Sinthome e que para cada analisante exista uma corda que prevalece. A correção do erro da metáfora para cada analisante vai ser predominantemente ou inibição ou sintoma ou angústia – que ele vai chamar genericamente de sintomas que são formas de arrumar o erro da metáfora.
Sobre o caso de James Joyce, citado várias vezes no Seminário, Silvia pontuou que se trata de um caso onde jamais houve desencadeamento e que para compreendê-lo ela considerou não apenas o seminário de Lacan, mas especialmente a biografia de Richard Ellman (o próprio Joyce) e as cartas de Joyce a Nora – a mulher dele.
Passamos ao caso: o pai de Joyce era um pai que não conseguia dizer não. Irlandês, pertencente à classe burguesa com uma grande herança – filho único e se chamava John, como todos os primogênitos dessa família. O pai de Joyce não trabalhava, vivia de renda de suas propriedades, teve muitos filhos e bebia muito. À cada filho que nascia ele vendia uma propriedade com o objetivo de dar festas para comemorar a chegada do filho e para falar de política.
Ele não atuava de nenhuma forma na política ou na comunidade, apenas falar sobre política e gastava seu patrimônio com essas festas. Era feniano – defendia a independência de Irlanda e que nunca aceitaram o conquistador inglês. Aqui Silvia Amigo chama a atenção para o fato da Irlanda estar submetida a outra língua e outra religião. Um ponto importante na biografia de Joyce foi que seu nome era para ser John, mas seu pai mal conseguia pronunciar algum nome no dia do registro e acabou sido registrado como James. Aí já um acidente do nome.
Quando vendeu sua última propriedade continuou sem trabalhar e passou a vender seus quadros, joias, talheres de prata, objetos de valor. Era então um pai que não sustentava os cuidados parentais – não possuía o sintoma paterno.
Joyce ganhou uma bolsa de estudos em uma escola particular de grande qualidade e lá estudou. Era o menino pobre frente às crianças ricas. Essa escola era uma escola dos jesuítas e Joyce toma São Tomás de Aquino como um pai suplente. Há vários episódios marcantes na biografia como o dia em que ele apanhou de seus colegas porque defendia um escritor inglês perante a turma que defendia escritores da Irlanda. Ele dizia que não sentia dor – tal era a desconexão dele com o corpo. Mais tarde ele escolhe como sua mulher uma camareira de hotel e tem filhos. Sua mulher chama-se Nora. Ela é importante para ele porque o estabiliza, faz-se de invólucro para seu corpo.
Ele tomava sem parar dinheiro emprestado de seu irmão, de amigos, de artistas a usufrui desse dinheiro da forma menos preocupada possível. Ele jamais paga aos que emprestaram dinheiro. Isso demonstra que não há nome do pai porque não há o sentimento de dívida. James não demonstra ter sentimento de dívida o que precisa ocorrer nos laços sociais. Joyce que além de não pagar suas dívidas também não oferece nenhum reconhecimento a quem lhe ajudava. Mas há uma mentalidade. Ele escreve sua biografia e Lacan vai dizer que com sua escrita James Joyce faz um escabeau que significa uma escada pequena para alcançar algo. Também se faz um aval egóico (beau em francês significa belo).
Silvia demonstra como é o nó borromeano de Joyce. A mentalidade dele está conservada, mas não é um nó borromeu. Não é neurótico e o laço social é diferente. A relação com o outro no laço social nesses casos como o de Joyce vai ser de indiferença ou de ferocidade.
Silvia Amigo comentou que se essas subjetividades com essa falta de sentimento de dívida passam a ser mais frequentes, isso produz uma sociabilidade muito difícil. A transmissão de pai para filho com os cuidados parentais se torna impossível nesses casos.
Assim foi com os filhos de Joyce, visto que Joyce não ofereceu a eles os cuidados e cada um padeceu de uma forma. Algo não passou de pai para filho e a mãe dos filhos de Joyce não se ocupou dos filhos porque estava ocupada dando “corpo” a Joyce.
Para finalizar, Silvia trouxe novamente o que Lacan diz: fazer do sintoma algo reciclado para que isso seja a nossa singularidade.
Hilda Victoria Carrasco